Por Ana Luiza Braga- Especialista em Terapia de Casais.
Não existem palavras no mundo que alcancem a dor da saudade.
E esse texto é sobre amor.
Prefiro começar te mandando meu abraço. Já perdi pessoas, que não eram meras pessoas. Na verdade, representam tudo que me define. Logo, ouso dizer que já perdi partes de mim mesma. Eu sei o quanto dói. Também sei que essa dor é proporcionalmente direta ao tamanho do meu afeto, ou seja, avassaladora.
No entanto, eu nunca perdi alguém por suicídio. Eu não posso sequer dizer que sei o que você está sentindo. Acredito que a dor do luto se intensifica com todas as perguntas inerentes a esse contexto. Eu sinto muito mesmo que você carregue tanto contigo. Gostaria de ter o poder de atenuar toda a sua carga. Então, reforço a minha maior intenção: sinta meu abraço.
O luto é um lugar (sim, gosto de ter essa imagem de lugar, na qual estamos inseridos) composto de muitos sentimentos confusos, complexos e, por vezes, contraditório. Portanto, não se assuste se você se pegar sentindo muitas coisas ao mesmo tempo- sorrir e dar gargalhada ao acessar uma memória e começar a chorar pelo mesmo motivo- dor e amor). Esse processo é o esperado para quem vive esse contexto.
A dra. Ana Cláudia Quintana Arantes costuma dizer que o “luto é o preço que pagamos por amar muito alguém”. Vendo dessa forma, parece justo sentir intensamente tantas coisas. Quando se ama muito alguém e temos o privilégio de dividir experiências com essa pessoa, vamos, necessariamente, sentir muito a sua ausência.
Não tenho aqui a intenção de romantizar o sofrimento. Meu percurso vai muito mais na direção de tentar te encontrar em sua confusa dor. Afinal, se o preço de se amar alguém é o tamanho do luto, eu imagino a potência que esse processo tem quando se acrescenta o fenômeno do autoextermínio.
Quantas dúvidas te cabem nesse lugar?
O setembro amarelo é um momento muito importante no campo da saúde mental. Tem o relevante papel de ampliar acesso a informações para maximizar a possibilidades de intervenções, disponibilidade de ajuda, capacitação, diminuição de preconceitos (e com isso, menos inacessibilidade a oferecer apoio e buscar recursos necessário) e etc. Essa é uma campanha que, por si só, não tem o poder de grande revolução. No entanto, é uma ferramenta muito valiosa que nós, profissionais da saúde mental, não podemos abrir mão.
Obs.: concordo que esse movimento precisa acontecer o ano inteiro. Mas isso é papo para outro momento.
Hoje de manhã eu estava em meu escritório preparando alguns posts informativos e fui invadida com pensamentos reflexivos. A saber: “essa campanha é tão necessária em termos de prevenção. Mas, existem muitas e muitas pessoas que já vivem o trauma da perda por esse contexto. Como essas pessoas são atingidas durante toda a campanha? Quantos gatilhos acessados? O que revivem?” ou “Existe culpa, uma vez que incentivamos a rede de apoio a estar presente e por vezes criticamos aqueles que ignoram sinais? Existe culpa por não ter visto os sinais que tantos profissionais estão dizendo? Existe revolva por ter visto e tentado ajuda, mas não ter surtido eficácia? Será que essa campanha se preocupa em cuidar dos enlutados? Os próprios enlutados estão em processos adoecidos e em risco de se atentarem contra a própria vida para acabar com toda a dor?”.
Muitos questionamentos mesmo.
Se você se sentiu contemplado em algumas das minhas perguntas acima e se existem em você muitas outras (imagino que sim), eu gostaria de te deixar meu pedido (pessoal) de desculpas por meu descuido durante a minha participação na luta. Imagino quantos gatilhos existem para você nesse momento.
Gostaria de pedir licença para te contar algumas coisinhas sobre adoecimento mental e que podem (bem pouquinho) tentar ser mais gentil com você.
Adoecimento em saúde mental é um processo invisível ao olho nu, mas de impacto gigantesco. Nossa sociedade (muito funcional e que não pode parar de produzir) tem muita dificuldade de assimilar os adoecimentos. Isso gera impacto na ordem e equilíbrio de algumas coisas, sabe? Quando o adoecimento é psicológico o papo se torna ainda mais repelido. É muito difícil dimensionar aspectos que só são sentidos no campo subjetivo.
Quando percebemos alguém que amamos em sofrimento, é muito comum que tenhamos comportamentos de tentar sanar aquele contexto a todo custo. Às vezes, infelizmente, lançamos mão de minimizar (a partir do nosso crivo e viés) o desconforto do outro. Todos nós vamos fazer isso ou ter como impulso a vontade de fazer. É que é muito difícil ver quem amamos em sofrimento. Entramos em negação e começamos a buscar soluções mais rápidas de solução da questão. Esse é um mecanismo de proteger o outro e, claro, a nós mesmos.
Quando obtemos informações através do relato de alguém sobre algum fenômeno, se torna muito abstrato compreender o retrato fidedigno do descrito. Nosso cérebro tem mais conforto em buscar suas definições a partir do que ele próprio acessa de informação. Impossível trazer neutralidade. Dessa forma, quando alguém nos relata suas dores e sofrimentos, nós não estamos vendo (tipo no físico, em exames e etc.) e não estamos sentindo em nós mesmos. Nosso contexto emocional está de outra forma, tendemos ter a nossa própria compreensão como referência.
Portanto, mesmo que você tente as técnicas mais eficazes do mundo para ler os sinais que podem ajudar a prevenir o autoextermínio, ainda existem grandes chances de não ser possível poder contornar todas as variáveis envolvidas. Ou, inclusive, talvez não seja possível intervir de forma tão neutra- você ama essa pessoa e está inserida na relação.
Além disso, o processo de adoecimento é muito complexo e, quando se há risco de autoextermínio, o manejo é tão difícil. Adoraria que existisse um caminho cientificamente comprovado e de 100% de eficácia. Não existe! Já sabemos que quem “passa ao ato” está em uma sensação de sofrimento tão grande que o único caminho que lhe parece possível é esse. O desespero e adoecimento trazem esperanças de alívio em um lugar que é contra natural do cérebro.
Percebem o que eu acabo de falar: é um processo contra natural da nossa espécie humana. Lutamos pela sobrevivência. A morte por suicídio é sempre um contexto de pouca esperança e, acima de tudo, de acesso sufocante a dores emocionais. Não é simples, não é fácil! O acesso precoce (ou não) ao tratamento aumenta as chances de sucesso na prevenção, no entanto, não é garantia. Sabe?
Portanto, talvez você tenha tentado de tudo e infelizmente não foi possível evitar. Talvez você não tinha informações suficientes. Talvez você não tenha acreditado nas informações que você acesso, porque você entendia diferente… enfim, você fez o que podia com a lente e as ferramentas que você tinha naquele momento. Tenho certeza que, o tempo todo, mesmo que inconsciente, você sempre quis que a pessoa que você ama estivesse bem e feliz. Tenho certeza!
Talvez essa campanha te chegue hostil e carregada de dor. E mesmo considerando a nossa pequenez perto de um contexto tão complexo, precisamos continuar nessa direção informativa. Sabemos que o impacto pode não ser tão revolucionário, mas também sabemos que a ausência de informações tem efeitos extremamente prejudiciais. Quanto mais naturalizarmos os processos de adoecimento e, em consequência, o movimento de busca de ajuda, maior o nosso impacto na luta contra os preconceitos. O estigma da saúde mental é construído e reforçado socialmente- e as regras sociais são as verdadeiras vilãs na perpetuação e agravamento de tantos adoecimentos.
Conhecimento pode salvar vidas porque, devagarzinho, vai se construindo uma rede preparada para lidar com situações como essas. Além disso, aumenta a intervenções mais precoces que podem diminuir a incidência do agravamento dos sintomas (a ideação suicida é um agravamento).
Espero que você entenda que nossa luta sempre será contra um sistema social opressor e que negligencia aspectos inerentes para a vida humana- a saúde mental. Nosso movimento não é para “bater” naqueles que estão mais próximos, no campo individual. Mas, em um todo muito maior e com poder suficiente para ações que promovem qualidade de vida. Não preciso nem dizer que qualidade de vida é fator imprescindível para uma vida não adoecida, né?
Enfim, esse é um texto de amor porque se propõe a trazer gentileza para sua dor em um momento de luta, excessos de informações, gatilhos. A sua dor é o outro lado da moeda do maior legado construído entre vocês- o amor. O acesso a um desses sentimentos traz um pouco (ou muitão) do outro. A culpa faz parte da elaboração que você precisa no contexto do luto. Assim como muitos questionamentos. E eu desejo, sem te apressar a nada, que você consiga elaborar esse tanto de formas que te levem a visitar esse espaço com ternura, gentileza, autocuidado, saudade, em afeto e amor.